POR SALVADOR NOGUEIRA
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Há 70 mil anos, mais ou menos na mesma época em que nossos ancestrais iniciaram sua expansão para além da África, mal sabiam eles que um evento celeste ameaçava impor um fim abrupto e melancólico à experiência humana. Nessa época, uma estrela passou de raspão pelo nosso Sistema Solar, a uma distância mínima que chegou a ser inferior a um ano-luz. Se o astro tivesse chegado um pouquinho mais perto, poderia ter despertado uma chuva de cometas na direção do interior do sistema planetário que, sem dificuldades, apagaria nossa espécie do mapa-múndi. Felizmente não aconteceu, e a raça humana sobreviveu para desvendar mais essa incrível história.
A Estrela de Scholz e sua companheira anã marrom passaram a menos de um ano-luz do Sol (visto ao fundo como uma estrela mais brilhante) cerca de 70 mil anos atrás! Ufa! (Crédito: Michael Osadciw/University of Rochester)
Os cientistas analisaram um astro apelidado de Estrela de Scholz, em homenagem a seu descobridor, o astrônomo alemão Ralf-Dieter Scholz. Em 2013, ele encontrou o astro, hoje localizado a 20 anos-luz da Terra, em dados coletados pelo satélite Wise, da Nasa. (Oficialmente, a estrela tem o nome de catálogo WISE J072003.20-084651.2.)
Trata-se de um astro binário, composto por uma estrela anã vermelha, com cerca de 8% da massa do Sol, e por uma anã marrom (categoria que corresponde às “estrelas abortadas”, que não conseguiram juntar matéria suficiente para iniciar as reações nucleares que a fariam “acender”). E o que chamou agora a atenção para ele foi seu movimento. Ele parecia se deslocar muito pouco no céu, apesar da proximidade. Uma possibilidade de explicar isso seria imaginar que a maior parte da velocidade da estrela estaria numa direção de profundidade, imperceptível pela posição celeste — ou seja, ela podia estar se afastando ou se aproximando do Sistema Solar.
Dito e feito: medições da distorção da luz da estrela causadas por seu movimento indicavam que a Estrela de Scholz estava de fato se afastando do Sistema Solar. Começou então a saga de, a partir do movimento atual, reconstruir seu paradeiro no passado. Os pesquisadores realizaram 10 mil simulações independentes que refletissem a possível órbita do astro em torno do centro da Via Láctea. Em 98% delas, a estrela passava a mero 0,8 ano-luz de distância do Sol.
Se você trocar o ano-luz por uma medida mais convencional, como o quilômetro, talvez o valor não lhe pareça pequeno — são cerca de 8 trilhões de km. Mas, do ponto de vista interestelar, é literalmente como passar raspando.
É tão perto que a essa distância ainda devem existir objetos que orbitam o Sol — são os membros da chamada nuvem de Oort, um enorme repositório de cometas nas profundezas do Sistema Solar. Felizmente, a estrela “visitante” não passou pela região mais interna da nuvem, onde seria capaz de perturbar muitos objetos e atirar alguns deles na direção dos planetas — a Terra sem dúvida seria um dos alvos. (A chance de isso ter acontecido era bem pequena, mas não nula — em uma das 10 mil simulações realizadas, foi exatamente o que ocorreu.)
CARROSSEL OU ROLETA-RUSSA?
O trabalho é um lembrete importante de como são as coisas na periferia de uma galáxia como a nossa Via Láctea. O Sol viaja em torno do centro galáctico a uma distância de cerca de 30 mil anos-luz, o que o coloca numa região relativamente dispersa do disco galáctico. Ainda assim, temos muitas estrelas vizinhas que também seguem seus caminhos em torno do centro da galáxia — cada uma em sua órbita própria e com sua velocidade e direção. Embora olhemos para as estrelas no céu e as vejamos na mesma posição dia após dia após dias, com o passar de milhares de anos se pode perceber que elas não guardam sempre a mesma posição com relação a nós. Podem se aproximar e se afastar.
Colisões são raríssimas, mesmo nas regiões mais internas da Via Láctea, onde a densidade de estrelas é maior. Mas só uma passagem de raspão já pode ser o suficiente para desestabilizar o sistema planetário ou, no mínimo, causar uma certa bagunça em seu interior. O perigo, literalmente, mora ao lado.
Contudo, também há outro ângulo pelo qual olhar o achado. Podemos pensar que a humanidade está 70 mil anos atrasada. Talvez se tivéssemos evoluído um pouquinho antes, estivéssemos em boa posição naquela época para tentar inaugurar a era das missões espaciais interestelares. Uma tentativa feita agora de chegar à estrela mais próxima levaria uma espaçonave até Proxima Centauri, uma anã vermelha a 4,2 anos-luz de distância. Se partíssemos 70 mil anos atrás, poderíamos ter mirado a Estrela de Scholz, atravessando um quinto dessa distância: 0,8 ano-luz.
Ainda assim, não seria fácil. Nossas espaçonaves mais velozes já lançadas levariam 80 mil anos para chegar a Proxima Centauri. No passado, poderíamos ter realizado nossa primeira jornada interestelar mais depressa: 16 mil anos.
Tá, ainda não é muito factível. Mas essa é a tecnologia atual. Dois séculos atrás, o recorde de velocidade pertencia a locomotivas a vapor, e não passava de 150 km/h. Em 200 anos, multiplicamos a nossa velocidade máxima por um fator de 400 (a New Horizons, espaçonave mais veloz a partir da Terra, saiu daqui a quase 59 mil km/h). Se conseguirmos sucesso similar em mais dois séculos, poderíamos cobrir 0,8 ano-luz em meros 40 anos — um período bem razoável para uma missão espacial de longa duração. As sondas Voyager estão quase chegando lá, e seguem operacionais.
Claro, hoje não temos mais de atravessar 0,8 ano-luz para chegar a estrela mais próxima, mas modorrentos 4,2 anos-luz. Isso colocaria o tempo de viagem, mesmo com essa projeção tecnológica otimista, em pouco palatáveis 200 anos.
Não chega a ser proibitivo, mas seria uma longa espera pelos resultados científicos. Viajar entre as estrelas não é fácil. Aparentemente, elas virem até nós é mais simples. Mas também é muito mais perigoso.