Padres e leigos trabalham juntos em centro de pesquisa no Arizona (EUA).Especialidade dos astrônomos é formação de estrelas e galáxias.
George Johnson
Do 'New York Times'
O “Requiem” de Faure está tocando ao fundo, seguido pelo Kronos Quartet. Periodicamente, a música é interrompida por um arpejo eletromecânico – como um riff de jazz numa clarineta –, à medida que os motores direcionam o telescópio para cima e para baixo. Uma noite de observação da galáxia está prestes a começar, no observatório do Vaticano em Mount Graham, no Arizona.
Galáxia a 102 milhões de anos-luz da Terra, em imagem obtida pelo observatório do Vaticano (Foto: Divulgação/NYT)
“Peguei. Certo, está ótimo”, diz Christopher J. Corbally, padre jesuíta e vice-diretor do Grupo de Pesquisa do Observatório do Vaticano, sentado na sala de controle fazendo ajustes. A ideia não é procurar anjos ou profecias, mas realizar uma astronomia técnica que combata a percepção de que ciência e catolicismo são necessariamente conflitantes. No ano passado, num discurso de inauguração de uma conferência, em Roma, chamada “Ciência 400 Anos Depois de Galileu Galilei”, o Cardeal Tarcisio Bertone, secretário de estado do Vaticano, louvou o antigo opositor da igreja como “um homem de fé que viu a natureza como um livro escrito por Deus”. Em maio, como parte do Ano Internacional da Astronomia, um centro cultural jesuíta em Florença, Itália, conduziu “um re-exame histórico, filosófico e teológico” do caso de Galileu. Porém, no esforço de reabilitar a imagem da igreja, nada fala mais alto que o artigo de um astrônomo do Vaticano, publicado, digamos, em revistas científicas como "The Astrophysical Journal" ou "The Monthly Notices of the Royal Astronomical Society".
Hierarquia técnica Numa clara noite de primavera no Arizona, o foco não é teologia, mas a longa lista de tarefas mundanas que traz um telescópio à vida. Enquanto rastreia o céu, o pesado instrumento desliza por um círculo de óleo pressurizado. Bombas precisam ser ativadas, contadores checados, computadores reiniciados. O sensor eletrônico do telescópio, similar ao de uma câmera digital, precisa ser resfriado com nitrogênio líquido para evitar que seus megapixels se atrapalhem com o ruído quântico. Enquanto Corbally corre de estação a estação, apertando botões e puxando alavancas, parece menos padre do que astrônomo, ou até mesmo um engenheiro de manutenção. Finalmente, quando tudo está pronto, as estrelas refletidas pelo espelho de seis pés são traduzidas em bits eletrônicos, logo reconstituídos como luz em sua tela de vídeo. “Grande parte da observação, hoje em dia, significa olhar monitores e mexer com computadores”, explica Corbally. “As pessoas dizem, ‘Ah, deve ser tão maravilhoso ficar lá, olhando para o céu’. Respondo que é muito bom, caso você goste de ver TV.” Usando calças jeans e camisa de trabalho, ele não é um homem que veste sua religião para todos verem. Nenhuma graça é oferecida antes de um rápido jantar na cozinha do observatório. Na verdade, o único sinal de que o Telescópio de Tecnologia Avançada do Vaticano é fundamentalmente diferente dos outros de Mount Graham, lar de um complexo astronômico internacional operado pela Universidade do Arizona, é uma placa do lado de fora da porta. “Esta nova torre para estudo das estrelas foi erguida neste pacífico local”, diz a placa, em latim. “Qualquer um que aqui buscar, dia e noite, os pontos remotos do espaço, que o use alegremente, com a ajuda de Deus”. Naquele ponto, a religião é deixada de lado – e a ciência começa.
Puramente prático O interesse da Igreja Católica Romana nas estrelas começou com preocupações puramente práticas quando, no século XVI, o Papa Gregório XIII recorreu à astronomia para corrigir o fato de que o calendário juliano havia perdido a sincronia com o céu. Em 1789, o Vaticano inaugurou um observatório na Torre dos Ventos, posteriormente recolocado em uma colina atrás da Basílica de São Pedro. Na década de 1930, astrônomos da igreja se mudaram para Castelgandolfo, residência do Papa no verão. Quando a iluminação – do tipo elétrico – de Roma se espalhou para o campo, a igreja começou a procurar um topo de montanha num canto escuro do Arizona. Construir em Mount Graham foi uma luta. Os apaches consideraram o observatório uma afronta aos espíritos da montanha. Ambientalistas disseram que era uma ameaça a uma subespécie de esquilo. Houve protestos e ameaças de sabotagem. Foi somente em 1995, três anos depois que o edital da Inquisição contra Galileu foi suspendido, que o novo telescópio do Vaticano fez suas primeiras observações científicas. Recentemente, o alvo eram três galáxias em espiral – números 3165, 3166 e 3169 no Novo Catálogo Geral – a cerca de 60 milhões de anos-luz da Terra, um pouco ao sul da constelação de Leão. Sentada numa mesa ao lado de Corbally estava Aileen O'Donoghue, astrônoma da Universidade de St. Lawrence, em Canton, Nova York, que está interessada em como essas massas gravitacionais puxam umas às outras, criando o equivalente estelar das marés. “Expondo, 30 minutos”, diz ela. Enquanto soam as baladas celtas na sala de controle, dados são sugados por discos rígidos, e uma coluna de números desce em seu monitor. O'Donoghue, que foi criada como católica, é autora de “O Céu Não é um Teto: A Fé de um Astrônomo” (The Sky Is Not a Ceiling: An Astronomer's Faith, tradução livre), onde descreve como perdeu e reencontrou Deus “na vastidão, na estranheza, na abundância, na aparente falta de sentido, e até mesmo na violência deste incrível Universo”. Pessoalmente, ela não chega perto de ser tão intensa. Enquanto espera que uma imagem carregue, ela vai até uma varanda para olhar o céu não-processado. O Aglomerado da Colmeia, uma das primeiras coisas que Galileu viu com seu telescópio, está cintilante na constelação de Câncer. A seu lado está Leão, onde O'Donoghue está procurando as marés gravitacionais.
O céu que importa “É o céu de verdade que importa”, diz O'Donoghue. Ela descreve como faz seus alunos irem para fora e olharem a Ursa Maior em diferentes momentos da noite. “Eles voltam e dizem, ‘Ela se move!’” – palavras que Galileu lendariamente calou, após ser forçado a abjurar sua obra científica. ‘Você pode dizer aos estudantes que a Terra gira, mas até verem isso com seus próprios olhos, eles não estão fazendo ciência”, diz ela. “Você poderia muito bem estar ensinando teologia e o Evangelho.” De volta à sala de controle, O'Donoghue explica como as marés gravitacionais estudadas por ela podem ser maternidades celestiais. Quando uma galáxia esbarra em outra, nuvens de gás são empurradas com tanta violência que produzem o nascimento de estrelas. No relatório anual do Observatório do Vaticano, no ponto em que uma empresa descreveria sua estratégia de negócios, está uma seção delineando a diferença entre “creatio ex nihilo” (a criação partindo do nada) e “creatio continua”: “o fato de que a cada instante, a existência contínua do próprio Universo é deliberadamente determinada por Deus, que desta forma está continuamente fazendo com que o Universo permaneça criado”. Teólogos chamam isso de “causas primárias”, aquelas que fluem do movedor que não se move. No topo dessa plataforma eterna fica outra camada, as “causas secundárias”, que podem ser deixadas à ciência com segurança. Corbally e O'Donoghue continuam trabalhando a noite toda, coletando dados sobre causas secundárias – marés galácticas, nascimentos estelares. O sono pode esperar até de manhã, e os pensamentos sobre causas primárias ficam para outra ocasião.
Hierarquia técnica Numa clara noite de primavera no Arizona, o foco não é teologia, mas a longa lista de tarefas mundanas que traz um telescópio à vida. Enquanto rastreia o céu, o pesado instrumento desliza por um círculo de óleo pressurizado. Bombas precisam ser ativadas, contadores checados, computadores reiniciados. O sensor eletrônico do telescópio, similar ao de uma câmera digital, precisa ser resfriado com nitrogênio líquido para evitar que seus megapixels se atrapalhem com o ruído quântico. Enquanto Corbally corre de estação a estação, apertando botões e puxando alavancas, parece menos padre do que astrônomo, ou até mesmo um engenheiro de manutenção. Finalmente, quando tudo está pronto, as estrelas refletidas pelo espelho de seis pés são traduzidas em bits eletrônicos, logo reconstituídos como luz em sua tela de vídeo. “Grande parte da observação, hoje em dia, significa olhar monitores e mexer com computadores”, explica Corbally. “As pessoas dizem, ‘Ah, deve ser tão maravilhoso ficar lá, olhando para o céu’. Respondo que é muito bom, caso você goste de ver TV.” Usando calças jeans e camisa de trabalho, ele não é um homem que veste sua religião para todos verem. Nenhuma graça é oferecida antes de um rápido jantar na cozinha do observatório. Na verdade, o único sinal de que o Telescópio de Tecnologia Avançada do Vaticano é fundamentalmente diferente dos outros de Mount Graham, lar de um complexo astronômico internacional operado pela Universidade do Arizona, é uma placa do lado de fora da porta. “Esta nova torre para estudo das estrelas foi erguida neste pacífico local”, diz a placa, em latim. “Qualquer um que aqui buscar, dia e noite, os pontos remotos do espaço, que o use alegremente, com a ajuda de Deus”. Naquele ponto, a religião é deixada de lado – e a ciência começa.
Puramente prático O interesse da Igreja Católica Romana nas estrelas começou com preocupações puramente práticas quando, no século XVI, o Papa Gregório XIII recorreu à astronomia para corrigir o fato de que o calendário juliano havia perdido a sincronia com o céu. Em 1789, o Vaticano inaugurou um observatório na Torre dos Ventos, posteriormente recolocado em uma colina atrás da Basílica de São Pedro. Na década de 1930, astrônomos da igreja se mudaram para Castelgandolfo, residência do Papa no verão. Quando a iluminação – do tipo elétrico – de Roma se espalhou para o campo, a igreja começou a procurar um topo de montanha num canto escuro do Arizona. Construir em Mount Graham foi uma luta. Os apaches consideraram o observatório uma afronta aos espíritos da montanha. Ambientalistas disseram que era uma ameaça a uma subespécie de esquilo. Houve protestos e ameaças de sabotagem. Foi somente em 1995, três anos depois que o edital da Inquisição contra Galileu foi suspendido, que o novo telescópio do Vaticano fez suas primeiras observações científicas. Recentemente, o alvo eram três galáxias em espiral – números 3165, 3166 e 3169 no Novo Catálogo Geral – a cerca de 60 milhões de anos-luz da Terra, um pouco ao sul da constelação de Leão. Sentada numa mesa ao lado de Corbally estava Aileen O'Donoghue, astrônoma da Universidade de St. Lawrence, em Canton, Nova York, que está interessada em como essas massas gravitacionais puxam umas às outras, criando o equivalente estelar das marés. “Expondo, 30 minutos”, diz ela. Enquanto soam as baladas celtas na sala de controle, dados são sugados por discos rígidos, e uma coluna de números desce em seu monitor. O'Donoghue, que foi criada como católica, é autora de “O Céu Não é um Teto: A Fé de um Astrônomo” (The Sky Is Not a Ceiling: An Astronomer's Faith, tradução livre), onde descreve como perdeu e reencontrou Deus “na vastidão, na estranheza, na abundância, na aparente falta de sentido, e até mesmo na violência deste incrível Universo”. Pessoalmente, ela não chega perto de ser tão intensa. Enquanto espera que uma imagem carregue, ela vai até uma varanda para olhar o céu não-processado. O Aglomerado da Colmeia, uma das primeiras coisas que Galileu viu com seu telescópio, está cintilante na constelação de Câncer. A seu lado está Leão, onde O'Donoghue está procurando as marés gravitacionais.
O céu que importa “É o céu de verdade que importa”, diz O'Donoghue. Ela descreve como faz seus alunos irem para fora e olharem a Ursa Maior em diferentes momentos da noite. “Eles voltam e dizem, ‘Ela se move!’” – palavras que Galileu lendariamente calou, após ser forçado a abjurar sua obra científica. ‘Você pode dizer aos estudantes que a Terra gira, mas até verem isso com seus próprios olhos, eles não estão fazendo ciência”, diz ela. “Você poderia muito bem estar ensinando teologia e o Evangelho.” De volta à sala de controle, O'Donoghue explica como as marés gravitacionais estudadas por ela podem ser maternidades celestiais. Quando uma galáxia esbarra em outra, nuvens de gás são empurradas com tanta violência que produzem o nascimento de estrelas. No relatório anual do Observatório do Vaticano, no ponto em que uma empresa descreveria sua estratégia de negócios, está uma seção delineando a diferença entre “creatio ex nihilo” (a criação partindo do nada) e “creatio continua”: “o fato de que a cada instante, a existência contínua do próprio Universo é deliberadamente determinada por Deus, que desta forma está continuamente fazendo com que o Universo permaneça criado”. Teólogos chamam isso de “causas primárias”, aquelas que fluem do movedor que não se move. No topo dessa plataforma eterna fica outra camada, as “causas secundárias”, que podem ser deixadas à ciência com segurança. Corbally e O'Donoghue continuam trabalhando a noite toda, coletando dados sobre causas secundárias – marés galácticas, nascimentos estelares. O sono pode esperar até de manhã, e os pensamentos sobre causas primárias ficam para outra ocasião.
Nenhum comentário:
Postar um comentário